A BALA NA CABEÇA – O CORAÇÃO NA FLORESTA
O meu trabalho é em prol da floresta. Eu defendo a floresta em pé e seus habitantes em pé. Mas devido esse meu trabalho eu sou ameaçado de morte pelos empresários da madeira, pelos camaradas que não querem ver a floresta em pé. E isso tem me causado problemas porque quando se fala da vida a gente quer permanecer vivo, igual eu luto pela floresta viva. – José Claudio Ribeiro da Silva
Bertold Brecht, mas poderia ser Dante ou ainda Shelley, cada um pensou ser a sua cidade o próprio inferno. Pelo que se pode consignar no necrológio dos que são mortos no campo no Estado do Pará, bem se poderia afirmar que o inferno é ali. Homens e mulheres, trabalhadores e lideranças rurais, mortos de tocaia, na floresta, ou mesmo na cidade, em plena luz do dia. Executados para que uma próxima vítima seja morta ao amanhecer. Numa rotina macabra, amanhã e depois, sem que nada se faça, nem a justiça, nem os dirigentes do Estado. Omissão, covardia, ilegalidade. E terrorismo.
Uma vez que sempre se está na linha de tiro: quem ousa contrariar grileiros, madeireiros, latifundiários e seus escusos negócios. A isso se soma a desolada e empobrecida paisagem dos assentamentos, vilas e pequenas cidades do sul e sudeste do Pará. Isso é o que se pode consignar, em resumo, dos enredos fatídicos que se desenvolvem e se avolumam – pelo que vimos ainda ontem o desdobrar de! mais um capítulo. Estão mortos os líderes extrativistas José Cláudio e Dona Maria. Como sempre se dá ali, mortes para lá de anunciadas, que se juntam a uma herança de violência, perseguição e terror. A lógica da devastação da Amazônia e sua ocupação desastrosa, sob todos os aspectos. A morte de um castanheiro e de sua mulher, numa emboscada, antecedida pela decisão da Ministra do Meio Ambiente de que se intensificaria o cerco aos desmatadores da floresta – um empreendimento criminoso que só faz crescer, e que, às vésperas da aprovação do fatídico Código Florestal pelo Congresso, se intensificou a um número intolerável.
A sinistra atuação da bancada ruralista para ver homologada em lei a mais perniciosa jurisprudência ambiental, fora de qualquer proporção com a realidade problemática que já vive o campo e a cidade, garante ainda mais espaço para quem arruína, devasta e, por vezes, mata ou manda matar; pois bem, essa bancada, pode ainda,! num misto de insanidade e despreparo, vaiar o anúncio dos as! sassinatos de José Claudio e Dona Maria, feito no plenário do Congresso.
Culpados pela sua própria morte. Foi assim com Gabriel Pimenta, Paulo Fonteles, Chico Mendes, João, José e Paulo Canuto, Josimo Tavares, Dorothy Stang. Quantos mais? Como coadjuvantes, vagam de cidade em cidade, a serviço de todo e qualquer crime, passando da intimidação até o assassinato, jagunços, capangas e pistoleiros a executar a descomunal obra de violência, em nome de uma “elite” que se instaura no campo e na cidade, quase sempre ao preço do sangue e do serviço escravo.
Aonde encontrar o correspondente legal para o dogma da pistolagem e de seus mandantes? Sabe-se que aonde quer que se dê dinâmica à omissão, conivência e impunidade, aí se chega ao limite derradeiro, e o mal se encarrega de fazer o resto. Há uma parcela de responsabilidade da grande mídia em tudo isso, sobretudo quando ela “franqueia” espaço aos poderosos para que se manifestem, surpreendentemente se ! tornando até “colunistas”, ainda que sempre saiam em defesa das causas próprias, contra tudo e contra todos. Uma imprensa assim só pode dar os ingredientes indispensáveis para a confecção de uma análise despersonalizada em torno de uma realidade que segue incompreendida e negligenciada – o Norte do Brasil –, em face aos clichês das abordagens, dos comentários despropositais e da apatia crítica.
A imprensa na Amazônia, ligada a grupos políticos e empresariais, não tem interesse em fazer ecoar uma fala como a de José Claudio sobre os madeireiros da região, ainda que ela corresponda a atos criminosos facilmente verificáveis. “Eles compram madeira de um colono a um preço irrisório, barato demais, e vendem caro no mercado. Eles falsificam documentos, porque eles não têm guia completa, mas arrumam um jeitinho.
Vão minando um, vão minando outro e assim por diante eles vão fazendo o mercado ilegal. Eles são os cupins da terra.” Os “cupins” q! ue assomam a Amazônia parecem constituídos para durar uma eternidade.! Entre eles partidos políticos como Democratas (DEM) que, entre outras práticas, contesta os direitos das comunidades tradicionais pela terra, intensificado o conflito agrário e suas consequências sociais danosas. José Claudio, Dona Maria e todos mais – um a um os vimos tombar em meio a essa luta.
Um combate que em Brasília não parece nunca demais: os povos da floresta têm que suportar sempre um pouco mais. A sua história violenta e trágica que, ao que se demonstra, não diz respeito às autoridades legais. O Estado nem de longe fez a sua parte para proteger e garantir a vida ameaça de José Claudio e Dona Maria.
É que somos um país injusto, que viola indisfarçadamente a vida e os direitos humanos. E as lendas constituídas pelas estatísticas econômicas e financeiras contadas por Ministros bem intencionados, vestidos em seus ternos Armani, não definem e abarcam o infinito território das desigualdades sociais, Brasil afora. Se o terrorismo no campo impede! alguns de sobreviver, há muito mais que luto, medo e morte. Daqui não se recua. Não se boicota a todos os demais, uma vez que não se pode bloquear as ações coletivas em defesa da floresta e do bem comum. Bastantes, intensas e diárias.
A farsa, o desmando e a omissão da justiça e do Estado se tornam evidentes num momento como este – em que a bala, o sangue e a imensidão devastada da floresta deixam de ser apenas uma referência distante e imprecisa de fatos e lugares para nos trazer de volta, atônitos e perplexos, ao coração da floresta, guiados pela indignação e pela vontade desejante de justiça.
Ney Ferraz Paiva
Belém-PE, 25 de maio de 2011
Matéria enviada por leitor do Blog
Foto: Ricardo Moura
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