Artigo: "Que poeta você vai ler hoje?", por Ricardo Silvestrin
Quando teve seu futebol criticado pelo rei, Romário disparou: "O Pelé calado é um poeta". Para o baixinho, é comum Pelé emitir opiniões descabidas. Essa fala irônica do Romário revela uma visão do poeta como alguém que diz coisas interessantes. Tem aquele jargão popular "Como dizia o poeta...", usado para introduzir uma citação de algo muito especial.
Pontos positivos de imagem para os poetas, que conseguiram, ao longo do tempo, ficar nesse lugar de quem diz algo que se aproveite. Melhor formulando: esse lugar certamente foi conquistado por alguns excelentes poetas que acabaram estendendo o ganho para a classe como um todo. Da poesia escrita à letra de música, do meio letrado ao popular, chamar de poeta também virou elogio. Tem até aqueles que dizem "Este sim é um verdadeiro poeta!".
Aqui já aparecem, por oposição, os falsos. E a toda hora surge alguém pra combater os falsos poetas. Como se fosse impossível admitir que existam poetas ruins. Não são ruins. São falsos. Se fossem verdadeiros, seriam bons. É o que deixa transparecer na fala de quem diz que fulano é um verdadeiro poeta.
Paulo Hecker Filho, que foi um bom poeta e também um bom crítico, colocou, numa entrevista à Tânia Carvalho, a questão da seguinte maneira. Bom poeta é aquele que, colocando numa balança toda a sua obra, é possível se selecionar trinta e cinco bons poemas. O cara escreveu, digamos, ao longo da vida, uns dois mil poemas. Salvando trinta e cinco, é um bom poeta. Tânia perguntou quantos poemas dele ficavam nessa peneira. Hecker respondeu com bom humor: "Trinta e sete".
No debate entre o bom e o ruim, muita tinta foi consumida durante séculos. Quem não está acostumado e se aproxima desse tipo de discussão pode pensar: "Gente, nunca cogitei que alguém pudesse brigar por poesia!". Um poeminha clássico do Millôr Fernandes falando desse embate: "Quem vai julgar/quem é belo ou feio?/Os que me odeiam?/Ou eu, que os odeio?".
Para nós, nascidos no século vinte, o século da invenção, todo poema que nos deixasse com a pergunta se isso é ainda um poema ganhava pontos. Já no século XVIII e mesmo em parte do XIX, seguir o padrão clássico, o herdado dos gregos e romanos, era o recomendado para se fazer um bom poema. Ou seja, repetir, diferentemente da busca pelo novo, que tanto nos atraiu.
E se você pegar poetas lá do início da era cristã, como Catulo e Marcial, vai ver que divertir, tirar um sarro, afrontar, falar mal dos outros, dizer palavrão, falar sem papas na língua de sexo era, pelo menos entre um grupo, o melhor que se poderia escrever em versos.
A poesia japonesa que se espalhou pelo mundo, o haicai, fala sobre quase nada. É uma cena em dezessete sílabas. Quanto mais se conhece a diversidade do que se produziu em poesia até hoje, mais se desfaz essa ideia de que o poeta é aquele que diz grande coisa e se passa a vê-lo como aquele que cria um jeito surpreendente de dizer. A frase do Romário, jogando com o valor do silêncio, mostra que o centroavante também sabe surpreender com as palavras. Não é à toa que evocou na sua fala, mesmo que ironicamente, os poetas.
Quintana, ao ser homenageado com o título de Cidadão Honorário de Porto Alegre pela Câmara de Vereadores, disse: "Antes, ser poeta era um agravante. Depois, passou a ser uma atenuante. Vejo agora que ser poeta é uma credencial.". Divirto-me com seu breve discurso. O agravante: Como se não bastasse, é poeta! A atenuante: Não... deixa... o cara é poeta... No Dia Mundial da Poesia, comemorado nesta segunda, é bom lembrar que é sempre tempo de descobrir os livros daqueles que fazem desse ofício uma credencial.
Ricardo Silvestrin
Poeta e diretor do Instituto Estadual do Livro (IEL)
Deixe um Comentário:
0 comments:
Postar um comentário